sexta-feira, 20 de março de 2009

Num departamento escolar deve imperar a partilha, a formação, a crítica e o ponto de vista do profissional (já alguém dizia que um ponto de vista é sempre uma vista através de um ponto). No que respeita à disciplina de Filosofia, mais essa vertente se torna exigível. A Filosofia é um dos palcos onde se verificam mais acesos debates sobre conteúdos programáticos. Era ainda estudante quando assisti a um debate (imagine-se)televisivo - creio que nos finais dos anos oitenta - sobre os novos programas de Filosofia. Lá se encontravam, entre outros, Manuel Maria Carrilho e, creio, Alexandre Fradique Morujão. Foi um debate aceso com duas tendências «beligerantes»: a tendência anglo-saxónica e continental. Não escondo que Carrilho teve um discurso eloquente e persuasivo. Também não oculto que sentimentalmente a vertente continental clamava por mim. Este debate nunca chegou a ser resolvido. Ainda hoje há «úlceras estomacais» por resolver. Contudo, há uma vertente, parece-me que liderada pelos colegas da Arte de Pensar - desculpem se estou a ocultar alguém - que tem tido uma postura razoável, no sentido científico da palavra, isto é, mantêm uma clara orientação, são coerentes naquilo que produzem, há um fio condutor na estrutura do que propõem. O problema é que, do outro lado da barricada, mora uma clara desorientação, uma indefinição. Os próprios manuais, na ânsia de agradar à «esquerda» e à «direita», englobam tudo numa «salada de fruta» onde não se consegue discernir o tronco, o caminho. Vem isto a propósito da definição do conhecimento como «crença verdadeira justificada» e do percurso sugerido pela «crítica na rede». O desenlace desta temática entronca na noção de coerentismo. Tomei a liberdade, no que ao meu departamento diz respeito, de leccionar esta temática. A dimensão holística presente, concordando com a tendência de enquadrar no todo as partes e o próprio todo ter uma dimensão maior do que essas partes, é estética e, se calhar verosímil. Curiosamente, os alunos gostaram. Precisamente por que é estético, o coerentismo suscita um conjunto de recursos e de exemplos atractivos: desde palavras cruzadas (para haver a consciência da interdependência), passando por quadros conceptuais de situações quotidianas. Porém, sentia que faltava algo. Sentia que a exigência proveniente da presença da Filosofia do Ensino Secundário pedia mais. Uma intuição cartesiana sugeriu-me os «jogos de linguagem» das Investigações Filosóficas de Wittegenstein. Será possível fazer esta ponte? É legítimo fazer este percurso sem que me seja lançado um anátema pela consciência do rigor filosófico? Lancei o seguinte exemplo retirado de algures (peço desculpa aos autores):
Um professor de cardiologia defende que a aspirina ajuda a prevenir enfartes.
Um seu aluno mais atento pergunta: «porquê?»
O professor responde: «porque diminui a formação de ateromas nas paredes vasculares».
E o aluno torna a perguntar: «porquê?»
O professor responde: «porque como anti-inflamatório ela diminui as inflamações das paredes vasculares.»
Assim, tanto o professor como aluno ficaram satisfeitos com a resposta. Esta «condição de satisfação» é apoiada pelo coenrentismo - as várias proposições são justificadas pela consistência de outras crenças, construindo-se uma rede - e pela noção de jogos de linguagem - pela presença de signos linguísticos comuns a uma determinada família de falantes. Um aluno, surpreendentemente mais atento a estas lides, perguntou-me - «qual o interesse então da filosofia». Engoli em seco, ao mesmo tempo que respondia: - estar atento à linguagem, procurando o rigor, desmontando discursos, solucionando problemas... O aluno retorquiu, dizendo: «solucionando problemas?». respondi dizendo que os problemas do ser humano são...linguísticos.

PS: o diálogo, infelizmente, é pura ficção.

Sem comentários: